do telefonema

Hoje o meu Pai ligou-me.
No meu íntimo achei mesmo que pudesse mesmo ser ele, que eu tinha estado num transe qualquer marado e que aquela era uma wake-up-call. Foram só uns segundos, os suficientes para acelerar o coração, sorrir, ficar com as palmas das mãos suadas, atender (olá Mãe, sim tem que escolher ligar do seu cartão que esse telemóvel tem os dois ao mesmo tempo) e chorar. Depois do soco no estômago, depois do desconcerto e da constatação recompus-me. Ele morreu, não há volta a dar. E por algum motivo meio estranho ainda não tive coragem de apagar o número de telemóvel. Ainda não apaguei as mensagens que trocámos. Ainda me dói tanto quando me lembro de que ele já cá não está, como se tivesse sido hoje de manhã.
Todos os dias me lembro de qualquer coisa que ele ia adorar, alguém com quem ele se iria pegar, uma rabugice qualquer que ia dizer. 
Sei que um dia passará de dor a saudade, mas não sei quando e não tenho ainda presente a sua ausência. Ainda tenho o instinto de ir ao quarto quando chego a casa dos meus pais ou de perguntar por ele quando falo com a minha Mãe. E mesmo a tempo mordo os lábios e engulo em seco. Ele morreu. Ainda hesito em ocupar aquele sofá não vá querer ele vir do quarto ver qualquer coisa na televisão. Ainda deixo as bebidas dele no frigorífico para estarem sempre frescas. Arrumámos tudo, distribuímos as coisas, partilhamos memórias, e ainda assim sei que não me convenci porque não quis ainda apagar o telemóvel dele, que sei de cor, mas que não consigo apagar. E hoje ele ligou-me. E eu ainda não apaguei o número.

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