do sonho e da magia

havia uma música da minha infância que dizia que quando cai a noite na cidade há sempre um sonho e há magia. e eu cantava, inocente, esta parvoíce, crente de que de facto a cidade se enchia de sonhos e magia, mas que eu não tinha ainda idade para perceber bem tudo isso. para mim eram beijinhos e festas no cabelo, e rodopios com uma saia rodada num restaurante qualquer, de luz morna e olhares felizes.

chegada além dos 40 percebo o engodo e o engano. há sonho sim, mas não há magia:

há uma fila de carros, guiados por seres derreados, em modo meio piloto automático alheados da beleza urbana, cheios de compras amanhadas, sacos que se vão acumulando, de crianças em sonos fora de horas ou birras por coisa nenhuma porque estamos todos imbirrentos. há o sonho do teletransporte e da paz, de ouvir no meio das notícias decadentes uma que seja um alívio ou uma alegria, o sonho de chegar a casa e ter, no rodar da chave, o abrir da vontade de tudo além da porta... da vontade de cozinhar, estudar, descarregar as compras, decidir o jantar, pendurar a roupa e apanhar outra tanta. a vontade de estar em casa, sem uma lista constante de coisas a fazer senão estar... o sonho de ter o tempo para fazer nada, ligar aos amigos, pintar desenhos, largar a vassoura e o computador e pegar no livro e no verniz das unhas.

canto muitas vezes no carro com os miúdos. a X. canta muito bem e com gosto e, sem modéstia, temos tido performances brutais, mas acima de tudo ligamo-nos e divertimo-nos. mas tenho sempre a atenção involuntária para as letras das músicas (além de que não tenham palavrões claro) quero ter a certeza de que o que sabe de cor e salteado é qualquer coisa de real e bonito. 

canto num semáforo e decido que lhes dou a ilusão ainda, deixo-os crescer devagarinho - estamos ainda em tempo de cantar que quando cai a noite é tudo sonho e magia. não é, mas eles não precisam de o saber já já.

cidade


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